sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Abajur



Dorme, dorme, dorme, ai que quero dormir de uma vez! Como é possível minha voz de choro quando sequer tô falando de verdade? Só tô pensando, ora bolas! No meu medo. Meu pensamento tem voz de choro. Nesse medo de todas as noites. Vou pedir a meu pai que deite comigo. Eu demoro e fico agoniada. Seguro sua mão e fico agoniada porque sei que ele não vai esperar até sempre. Eu sempre demoro a dormir. A culpa é da janela do meu quarto que balança. Faz cineminha das coisas da rua na parede. Das luzezinhas, milhões de luzezinhas coloridas que piscam quando pisco os olhos. Da cama que tem vazio embaixo. De tudo. Somente de manhã faço as pazes com meu quarto. A noite fica tudo estranho e o chato mesmo é ser a última a dormir. Pai, quando é que tio Alberto vem nos visitar? Quando? É um alívio quando tem visita a noite. Eles ficam até tarde conversando na sala e não dormem antes de mim. Ou quando é final de semana. Os pais dormem mais tarde nos sábados. Hein pai? Ele vem quando? Não sei filhota, acho que na sexta feira. Quem é que está fazendo oito aninhos na sexta feira, hã? Aninhos não, anões. Estou ficando uma velha medrosa. Aniversário não vale. Queria um convidado por noite. Ei! Ainda não dormi! Ele pensa que sou boba mas eu sei que ele me engana sempre. E ainda desliga o abajur antes de sair. Nem ligo. Rapidinho chega amanhã quando durmo. Agora estou mais velha e meu pai viajou. Eu gosto de suas viagens. Ele sempre traz um presente bonito pra mim e eu posso dormir com minha mãe todos os dias. Quando durmo com minha mãe provoco as luzezinhas de propósito. Pisco os olhos com força como desafio. Mas fico com pena logo em seguida pois elas parecem mais tristes e fraquinhas quando não tenho medo. Assim não tem graça. Vou pensar em outra coisa. Gosto de pensar nas coisas da escola. O ano tá terminando e o melhor é poder levar todo o material pra casa. Tem tanta coisa na minha pasta. Todos os meus trabalhos. Depois minha mãe guarda e não adianta nada. Mas também as férias demoram muito e fico com saudades da escola. Esse ano, vou sentir saudades de Vinícius, o menino mais bonito da minha sala. Vinícius é ótimo pra pensar antes de dormir. E aí não pode ser pensamento de choro. Mas ele é pequeno e nunca pode ser meu par nas festinhas da escola. Será que ele vai crescer nas férias? Amanhã eu penso nisso. Não disse? Minha mãe já guardou minha pasta. Nas férias eu viajo e é maravilhoso. Na casa dos meus avós eu não tenho medo de nada. Não durmo no meu quarto! O quarto da minha prima é tão diferente do meu, queria morar aqui. Nas férias tenho mais tempo pra pensar em Vinícius antes de dormir. Ai, que saudade da escola. Minha mãe encapa meus livros novos e eu ajudo. Quando chego de viagem gosto do cheirinho da minha casa. Depois fica igual. Vinícius não cresceu mas eu contei minha viagem pra ele mesmo assim. Pai, me ensina matemática amanhã? Acho engraçado quando meu pai vira professor. A letra dele fica horrível no quadro mas ele sabe toda a matemática do mundo. Sempre sabe. Outra noite, tentei provocar as luzezinhas mas elas não apareceram. Pensei em outras coisas. Pai? Desliga o abajur quando sair, tô com sono!

11 comentários:

Anônimo disse...

Me lembrou o início do Retrato do Artista Quando JOvem: "Era uma vez, mas uma vez muito boa mesmo, um avaquinha mu... e um menininho..."
Delicado, gostoso.

Anônimo disse...

A alma exposta em sutilezas... Lindo, Ana!

Tell Aragão disse...

lindo!

Anônimo disse...

Aninha!
Que ritmo encantador tem essa prosa. E como é linda e cheia da vida essa menina! Gostei de vir aqui. Recomecei a escrever ficção. Depois te mando o endereço. Um beijo saudoso. Jonatas

Anônimo disse...

Aninha, coisa boa descobrir seu blog. Adorei a agilidade de seu texto. E também das imagens. Parabèns! Marcia

Anônimo disse...

Hummm, me lembra todos os contemporâneos que mais gosto: Rubem Fonseca, Patricia Melo. Frases curtas, de efeito... de "café com leite" não tem nada! adorei!

Onésimo Santos disse...

Sei que quem escreve, escreve por si mesmo, para exorcizar os seus demônios. Mas há exorcismos e exorcismos. O teu é agradabilíssimo, nem parece que tem capetas no meio.

Anônimo disse...

04 de março... quero texto novo. Tá pensando que vida de blogueiro é fácil??????

Ana Areias disse...

Ed, minha alma à sua disposição, linda! Colocarei o link do teu blog aqui tá?!
jonatas, obrigada pelo comentário tão gentil!
Márcia, onde estavas? saudades...
Lilian, não se preocupe, eu ADORO quando me chamas de café com leite!!! É em tua homenagem!!!
Onesimo, juro que vou me esforçar e caprichar mais nos próximos fantasmas!!!

Josias de Paula Jr. disse...

Mescla de uma fala infantil e reminiscências... Bonito!

Anônimo disse...

A COMOVENTE LUZ NO ABAJUR

Ana Bela,

Fiquei encantado com teu conto. É arte. Arte porque é original. O que é senão arte uma frase como
MEU PENSAMENTO TEM VOZ DE CHORO,
ou
FAZ (A JANELA) CINEMINHA DAS COISAS DA RUA NA PAREDE?

Como não ficar encantado também diante da cena de tristeza das luzes quando a menina não tem medo?

Num bom escritor, digo, numa boa escritora,nada é por acaso. Em mãos que escrevessem menos, o nome do menino seria qualquer um, João, Pedro, Marcos... mas nas suas ele é Vinícius, com toda a carga significativa e poética do nome.

Deixe-me por último me encantar com esta frase
VINÍCIUS É ÓTIMO PRA PENSAR ANTES DE DORMIR - que maravilhosa ambigüidade.

eugenio