segunda-feira, 19 de maio de 2008

lua profética

Dos lábios a mais doce e cruel seiva
sorrisos nervosos do gozo proibido
avisto, precipício as avessas, me atiro
ao alto, profecia de êxtase e agonia.

Teu leite nos enche de lunatices
posso ver-te inteira e desejosa
tua clara face deliciosa
e a máscara negra do precipício

quinta-feira, 15 de maio de 2008

sonho de pó

De sonhos e outras coisas invisíveis.
Quando percebi que estava sendo seguido não tive medo como das outras vezes. Sabia que era ele e sua presença não incomoda mais. Como poderia? Ele já não me é estranho e de alguma forma sempre estivemos juntos.
Todos os dias passo por essa rua. Nunca me entreguei ao cansaço visual da repetição. Para mim ela está sempre diferente. Como quem procura novos detalhes a cada novo encontro com uma obra de arte sempre a vejo diferente. O belo não se cansa de ser explorado, é fonte inesgotável de novas leituras, inclusive para a mais grostesca delas.
A rua. Gosto dela especialmente em dias de chuva como hoje. A chuva reorganiza os elementos da obra. Cada qual em sua devida posição, as bancas de frutas, jornais, a garçonete no café, o barbeiro na barbearia, o guarda de trânsito na chuva mesmo. Além do mais, a chuva limpa a visão do observador assim como o envolve em atmosfera que influencia na leitura da obra. Adoro a chuva. E como já disse, ela nos empurra mais depressa ao nosso destino imediato, sigo então para o canto da tela ao qual pertenço.
Bom dia Rita, um expresso grande, por favor.
Vejo através do vidro da porta que meu amigo parou no fiteiro do outro lado da rua. Tenta se proteger da chuva enquanto fuma um cigarro.
Tenho uma grata sensação de dever cumprido ao tomar uma xícara de café em jejum. Acho na medida certa, se desperta o meu corpo ainda sonolento, não lhe agride a leveza de estado, aos poucos sinto que estou de fato começando um novo dia. Eu bebo o café e ele fuma. Olha em minha direção. Caminho em direção a porta do café. Mesmo quando está às minhas costas sei quando está me mirando, sinto o seu olhar. A presença dele deixa o ambiente com qualquer coisa de mais grave, pesado, como se tudo se movesse mais rapidamente e o volume dos sons aumentasse.
Agora, num pequeno entervalo em que a chuva cessa, a fumaça que sai de sua boca ganha contornos mais nítidos e uma cor branco-cinza mais forte no ar limpo e claro que a chuva deixou. A fumaça equilibra a tela, espaço entre nós, cada qual numa extremidade, com os olhares simétricos. Fumaça espelho que corta as coisas invisíveis.
Após tantas vezes me havendo seguido, acostumei-me ao espelho e, dependendo da luz do dia, faço-me sombra dele ou faz ele minha sombra. Ou ele é sempre sombra, sempre pó.
Os sonhos são atraídos pela energia da mente. Acordados, atraímos pela matéria invisível do coração. No final, as duas coisas estão extremamente ligadas.
Agora que o café cumpriu seu dever é hora de passar a vista no jornal. Hum, melhor mesmo era não ter tomado café hoje, assim as notícias estariam menos consistentes, melhor seria se fosse sonho, notícias de pó.
A manchete fala qualquer coisa sobre uma notícia que já é estampa desde o século dezoito. São números. Estatísticas quase são feitas de pó, estão no campo da abstração, não?
Bom, o que importa na matéria é a velha notícia concreta de que no Brasil 10% detêm 75% da riqueza do país. Isso desde o século 18. Números rígidos. Distribuição disciplinada e linear, essa nossa. Melhor voltar ao pó. Procuro minha sombra.
Ele continua lá, sempre uma mesma distância equilibra nossos corpos. Às vezes me pergunto quem atrai quem ou se há um centro comum. Sei que das coisas invisíveis que o separam de mim muitas lá foram postas por nós mesmos.
Por entre o pó dos sonhos atravesso sempre eu sua direção sem que nada me impeça. Mas é que nos sonhos a matéria invisível que há entre nós dois é fruto de minha imaginação.
Sonho com a matéria do jornal.
Fecho os olhos, faço força e os números ganham vida. Mudo as estampas. O café estimula e a fumaça de minha sombra se embaraça com o papel do jornal. Parece uma tela feita só de nuvens cinzentas onde vez ou outra surge um número que ri de mim. Minha sombra ri também. Acabo cedendo. Rio também.
Não, Rita, só o jornal por favor.
Hoje prefiro a sonolência do corpo para o caso de um encontro com o pó.
No jornal, vejo as notícias um tanto embaçadas. Hoje sem chuva, o sol castiga mais a visão que tenho do outro lado da rua. Atravesso apertando os olhos e fazendo força para encontrá-lo perdido entre a fumaça do seu cigarro. Que tela é essa?
Queria estar dormindo, mas sei que não estou. Nos meus sonhos ele nunca vira pó.