Num cruzamento, são duas avenidas, quatro cantos com suas
esquinas, tantos carros e muitas vidas: umas que passam despercebidas (por
quem, vai depender do ponto de vista), outras acenam com cortesia. Passa gente
guiada pela rotina e nem percebe que passa e, finalmente, há aqueles que não
passam, pois lá já estão. Em seus postos diários, parados em meio ao trânsito
alheio.
Neste cruzamento há quatro vidas. Cada uma segurando a
ponta de uma via.
Quem atravessa a rua ao som do apito de Carlos, o guarda de
trânsito, não imagina que ele anseia por mais um por de sol após um dia
iluminado por seqüências de verdes, amarelos e vermelhos. São trinta e cinco
segundos pra uma via e trinta e cinco para a outra, subdivididos em mensagens
coloridas. Já fez todo tipo de cálculo com essas seqüências e hoje consegue
dividir praticamente todo tipo de atividade em unidades de trinta e cinco
segundos. Ao chegar a casa, consegue tomar um banho em oito sinais, jantar em
dezoito, lavar as louças em vinte e só. Para televisão não tem muita paciência;
às vezes duas cervejas e três ou quatro músicas na rádio. Carlos sempre pensa
que dependendo da música, lá se vão seis ou sete sinais. O guarda só não conta
sinais quando está a ver o por do sol em algum lugar qualquer, mas de
preferência na praia, que é onde ele mais gosta. Mas voltando ao nosso cruzamento, quem o atravessa
não imagina o quanto ele leva sério a tarefa árdua de manter os pedestres a
salvo e como se irrita quando os mesmos negligenciam a faixa de travessia. Não
imagina como ele se chateia com os motoristas apressados e grosseiros e como
aprendera a abstrair, de alma e de coração, os olhares furiosos dos mesmos
quando orientados a parar. Mas quem passa também não imagina como Carlos
reabastece sua crença num mundo melhor e na beleza das pessoas quando percebe a
cautela da mãe ao atravessar com a pequena ou o motorista generoso que para de
bom grado ou com qualquer outro pequeno detalhe na contramão da feiúra habitual
daquele cruzamento e então ele ressignifica os verdes, amarelos e vermelhos e
apita feliz.
A moça virou a esquina e nem percebeu que Joaquim, o
relojoeiro, depois de tantos anos desenvolvera uma incrível sensibilidade
para detectar os estados de ânimo dos desconhecidos. Atender tantos clientes
aflitos, impedidos de entrarem em casa depois de um longo dia de trabalho ou
atrasados para um compromisso importante da empresa ou para o encontro do
grande amor, o abasteceu com matéria prima em abundancia para conversas e mais
conversas no bar do Afonso, que fica logo ali na outra esquina. Tudo começa com
um o que houve, seguido por um e foi mesmo, e começa a sessão. Enquanto faz a chave cópia, Joaquim conversa
com seus clientes com a habilidade de um experiente terapeuta. E ele deve ser
bom, pois esses seres aflitos saem, de fato, mais tranqüilos. Mérito de Joaquim
ou da chave salvadora novinha em metal, eu não sei. Joaquim afirma que tem o
melhor trabalho do mundo não só por desvendar os segredos daquelas chaves, mas
porque realmente gosta da ideia de que com elas aquelas pessoas todas entram em
seus lares, santuários preservados, universos particulares sobre os quais gosta
de adivinhar os mínimos detalhes, a divisão de cômodos, objetos carregados de
significado e a proteção e a paz que aquele lugar traz aos seus donos. Joaquim não
tem um lar cheio de cômodos, dorme ali mesmo em sua barraca de chaves e
relógios. Ao final do expediente, a barraca vira do avesso e de fora se volta
para dentro. As chaves, roscas, pulseiras e relógios, expostos tal como
penduricários pendentes da cobertura da barraca, encontram descanso em uma
caixa abaixo da mesa de trabalho. O colchão é desenrolado e, apesar de pequeno,
é bem confortável. Ainda há a pequena televisão que, exceto às sextas feiras
quando o bar do Afonso é religião, é sua companheira fiel. Tal qual como faz
com seus aflitos clientes, Joaquim analisa criteriosamente a personalidade de
tudo quanto é personagem de novela. Vilão, mocinho, personagem secundário,
todos ganham a atenção do nosso terapeuta. E ali, fechado em 4 metros
quadrados, cercado pelos segredos de tantas chaves, ele encontra a segurança e
conforto do seu universo particular.
Segurando a terceira ponta da cruz encontramos Mário. Tipo
tranqüilo e calado, Mário conserta sapatos há pelo menos trinta anos. Sapateiro
ou artesão, como prefere, é reconhecido pelo trabalho impecável, minucioso, às
vezes milagroso e sempre demorado. Mário não tem pressa com as entregas e os
fregueses não costumam reclamar. Talvez pela satisfação do resultado, talvez
porque, na maioria das vezes, são calçados em tão péssimo estado que o que vier
ou quando vier pouco importa. Mário realmente não tem pressa. Nunca vai a lugar
algum. Está sempre ali, parado, pensando nos caminhos percorridos por aqueles
sapatos. Gosta de imaginar que para eles, os sapatos, sua loja foi um pouso,
local de descanso, parada obrigatória, freio de manutenção, para que possam
finalmente seguir por caminhos que ele, Mário, nunca irá percorrer. Acontece
que o sapateiro tem medo das odisséias do mundo que tanto maltratam as solas
dos sapatos alheios. Prefere ficar em sua loja, curando as feridas do couro
gasto, as suas e as dos sapatos, e acredita que assim cumpre bem o seu papel, já
sem culpa por não ser ele mesmo cúmplice de tantos passos. Ás vezes Mário sente
vontade de perguntar a seus clientes onde se dera tamanho estrago. Mas fica
calado. Mário precisa guardar os caminhos imaginados seguros da realidade.
Mário não espera mais nada além de mais sapatos.
Afonso vocês já conhecem. Ele segura e,
de certa maneira, une as pontas desse cruzamento. Muita gente passa diariamente
no bar de Afonso. Aquela mesma gente apressada que não reparou o apito de
Carlos; os seres aflitos, futuros clientes de Joaquim; seres mais tranqüilos,
clientes já feitos de Joaquim; os caminhos não percorridos de Mário. Os
clientes de Afonso procuram coisas diferentes em seu bar. Um café apressado,
uma água para refrescar, um café mais demorado com tempo pra papear sobre a
notícia que passa na televisão (sim, Afonso acredita que a TV é um direito dos
seus clientes), uma cerveja para aliviar o dia pesado, três ou quatro para
acompanhar o segundo tempo do jogo de futebol (sempre que possível a TV está no
futebol), muitas delas para chorar o amor perdido, enfim, tudo que se pode
buscar num bar como o de Afonso. Afonso aprendeu a acompanhar essa rotina, com
seus tipos de sempre, com uma indiferença elegante. Ele já sabe todas as falas,
as queixas, as deixas, mas não importa e ninguém percebe. Talvez a
previsibilidade lhe traga algum conforto. Afinal, prefere as falas adivinhadas
desses estranhos à solidão do fim de expediente do bar. Um bar fechado tem
sempre cara de fim de festa. Afonso se sente desolado todas as noites ao fechar
o bar. Ele só espera o dia seguinte, esperança de recomeço da litania de todo
dia. Apito, relógio, chave, trinta e cinco segundos, gente aflita, gente
tranqüila, o futebol, as mesmas histórias de sempre, o mesmo cruzamento.