domingo, 29 de junho de 2008

litania de um preso

Depois desses anos todos não sei dizer se realmente nasceu um sentimento entre nós ou se simplesmente nos acostumamos um ao outro. Mas, de uma forma ou outra, sei que agora ele me importa. Talvez se nosso exílio tivesse sido sob outras circunstâncias, quem sabe.

Também não lembro quando comecei a dormir tranquilamente ou mesmo quando consegui não pensar em sua presença, fosse por alguns minutos, pela primeira vez. Os primeiros anos foram realmente difíceis.

Sei que deixamos tudo para trás. Cada vez esqueço mais. De início me exercitava, revia em memória seus nomes, suas fisionomias, gestos, encontros que tivemos. Revia exaustivamente. Repetia a ordem das lembranças. Montava e remontava. Sentia mal se deixava faltar um pedaço de lembrança. Litania de prisioneiro.
Sei que ele tinha as lembranças dele também. E era isso que nos importava no início. Fugíamos de pensar um no outro. Estávamos ali e precisávamos nos ignorar. Não dormia. Não relaxava nunca. O silêncio incomodava mas também não havia assunto.

Estava enlouquecendo com certeza. O problema é pensar tanto, toda hora, pensar, pensar. Pensar no passado. Desespero. E agora? Pensar na saída. Pensar que não tem saída. Não dá para chorar, não consigo chorar. E ele, tem ele aqui o tempo todo. O melhor seria enlouquecer de vez. A loucura talvez me libertasse da angústia.

Não enlouqueço nem paro de pensar. Pensar na angústia. Que solução, por que não enlouqueço? E ele? Ele também é minha angústia ou a representação dela.

Sonho, tenho pesadelos terríveis. Pesadelos às avessas que interrompem a realidade. Momentos de paz que me alimentam a consciência. Preferia a angústia constante, preferia enlouquecer. Acordo e lá está ele.

Esgotado, as vezes penso nele. A litania, agora, virou canção vazia. E ele? Quem é ele? Agora durmo mais, não me incomodo mais tanto com ele. Estamos juntos, ainda bem.

Pesadelo. Acalmo quando acordo e lá está ele.

Agora somos só nós mesmos. Pensamos somente em nós mesmos. Não canto mais as lembranças de fora. Durmo bem mesmo em sua presença. Quando ele está dormindo as vezes sinto medo. Conversamos muito, mas também quando silenciamos não é mais desconfortável.

Ele é tudo que tenho pra sempre.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

orvalho

-Por que dizes isso para mim?
-Estou falando porque sei. Do fio mais fino do tempo viemos, seremos tudo de mais breve.
-Não acredito em ti!
-Pois não deverias perder tempo lamentando o percurso, acabas por perder o teu fim.
-Fim? Então não vês que nascemos para o ardor das mais fortes paixões?
-Tens razão. Quão breve nos são, a vida e as paixões. O tempo de um suspiro.
-E o perfume, não sentes?
-Ah, como sinto, caro aos mais felizes de vivê-los!
-Então amanhã...
-Amanhã não havemos, há um tempo de luz que jamais verás.
-Quando?
-Por que não ficas quieto e sente o calor? Novamente, terás feito nada além de lamentar.
-E esse calor, o que é?
-Não é bom?
-Gosto. Sinto como se fosse espalhar-me.
-Êxtase liquefaz. Iremos com os primeiros raios mais fortes.
-Como brilha! E como é perfumado!
-Serena!
-Sereno.
-Da beleza da alvorada aos espinhos de nossa mãe.