1.
Clarinha
corria pelo quintal da casa que não lhe pertencia, mas que serviria como lar
por tempo indeterminado. A grama estava verdinha e bem aparada e havia um
caminho de pedras que escondia um mundo inteiro de seres minúsculos por debaixo
delas. Assim pensava Clara, a mais nova, sete ou oito anos, enquanto pulava
pelas lajotas contando uma a uma e calculando os saltos para que os pés não
tocassem a grama.
Guilherme,
ou Francisco, tenho quase certeza que era Guilherme seu nome, sentia o sol aquecer
seu corpo deitado no batente da varanda e, ainda que tivesse mostrado resistência
a essas férias forçadas e à casa que não era sua, como se espera de todo
pré-adolescente com seus onze ou doze anos, pensou que não seria de todo mal
ficar um período longe da escola e de todos os conflitos, testes e tarefas que considerava
desnecessários e inoportunos e que não passavam de perda de tempo. Sentiu quase
alívio, mas manteve a cara amuada para todos os efeitos e continuou no mesmo
canto sem dar cabimento para muita conversa.
Maria
Lúcia, professora ou veterinária, não tenho certeza, guardava as compras e
arrumava o quarto que dividiria com seus dois filhos de agora em diante sem
pensar muito em si ou no resto do mundo. Guardava e arrumava, contando os itens
e fazendo cálculos rápidos sobre a duração do estoque ou sobre como organizaria
as refeições. Estava pausada da vida e tinha esperanças de retornar em breve ao
ponto justo da pausa, quando voltaria a ser Maria, a professora ou a
veterinária, sem economia de pensamentos, questionamentos e energias, sendo
vida que não percebe viver..
Maria,
Clarinha e Guilherme eram três mundos isolados juntos. Três fronteiras ligadas
pelo afeto, mas separadas por uma percepção completamente diferente do que
seriam aqueles dias, ou meses, vivendo em confinamento naquela casa que ironicamente
não era, mas não poderia ser mais deles do que qualquer outra moradia.
Clara era o país da leveza, cultivando sem perceber toda a poesia que a infância permitia explorando cada pequeno recanto do jardim e imaginando mil e um roteiros percorridos entre o oitão da casa que ligava o portão da frente ao fundo do terreno. Guilherme se isolava e mal se movia, mas trazia o mundo de fora pelas notícias e relatos dos conhecidos e dos desconhecidos que lia no celular, e Maria Lúcia tentava ao máximo se manter alheia de tudo para seguir no automático cuidando do funcionamento do que seria seu limitado mundo e das crianças.
Clara era o país da leveza, cultivando sem perceber toda a poesia que a infância permitia explorando cada pequeno recanto do jardim e imaginando mil e um roteiros percorridos entre o oitão da casa que ligava o portão da frente ao fundo do terreno. Guilherme se isolava e mal se movia, mas trazia o mundo de fora pelas notícias e relatos dos conhecidos e dos desconhecidos que lia no celular, e Maria Lúcia tentava ao máximo se manter alheia de tudo para seguir no automático cuidando do funcionamento do que seria seu limitado mundo e das crianças.
Guilherme
contava com frágil preocupação sobre a quantidade de doentes mundo afora, o
colapso econômico e o esvaziamento das mercadorias nos supermercados do país e
do mundo e às vezes lia em voz alta trechos dos textos pouco confiáveis que
encontrava em suas redes sociais. Maria Lúcia sabia que grande parte era verdade,
filtrava partes, imaginava que ainda outras podiam ser piores porque sempre
acreditou em subnotificações sobre tudo no mundo, mas mudava de assunto, falava
que o almoço estava pronto, reclamava da bagunça e relembrava que todos deviam
fazer sua parte para manter a casa em ordem. Clarinha puxava sem sucesso uma
brincadeira com o irmão, falava dos bichos do jardim e propunha um banho de
mangueira. Estava calor, tanto calor que por mais que Maria não quisesse pensar
em nada, o calor pensava por ela e virava tema em sua cabeça. O que fazer com
esse calor todo? Clarinha abraçava a mãe. O carinho da menina era tão
verdadeiro quanto aleatório. Era do tipo que dizia “eu te amo” e distribuía beijos
e carinhos a qualquer momento e independente de cabimento. Era amor expresso
que equilibrava o que não se falava na casa. Guilherme tentava interpretar os
abismos à sua volta como se ele próprio não fosse parte do desmantelo, achava
graça da mãe negando os fatos e se divertia com a desinformação da irmã mais
nova.
O
dia seguia, como seguiriam muitos outros ainda, com as bordas sensíveis
daqueles três a se tocarem como num equilíbrio torto que faz um segurar o
outro, como escultura estranha que nos admira não desmoronar. Cada qual que
buscasse ou a realidade, ou o sonho ou a certeza de que não vale a pena
realidade ou sonho.
Exceto
quando já era tarde da noite e as crianças dormiam e Maria Lúcia se permitia
ser algo além da integridade por um fio, como quem segue dando corda para que o
relógio daquela frágil sobrevivência não parasse, para se vivificar, sentir as
dores, os medos, e pensar na vida além das refeições e arrumações, chorar pelas
incertezas e sorrir com ternura pelas trelas carinhosas de Clarinha e pelos
boletins informativos de Guilherme, que se fazia quase crível fortaleza. Maria
Lúcia, enfermeira ou veterinária, chorava até dormir sentindo que não havia
fronteiras dentro daquele quarto e que no dia seguinte ela voltaria ao
automático até que tudo passasse e ela voltasse a ser Maria.
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