sexta-feira, 25 de abril de 2008

a valsa


Definitivamente a hora mais prazerosa do dia. Não porque chego ao fim de mais um dia de trabalho e portanto estou livre de obrigações, posso fazer nada ou qualquer coisa, mas porque de fato gosto dos finais de tarde. Em minha cidade melhor hora não há. Recife ganha novas cores no final do dia. E ares, novos ares que conduzem num som mais calmo a correria da cidade. O amarelo escuro parece fazer o movimento mais calmo. Eu ando mais devagar no final da tarde. Moleza solar quando o sol esfria. Parece que o trânsito esquece a corrida para contemplar em silêncio as suas margens.
Cidade de margens, nem sempre nos viramos ao leito.
Carros pisando em ovos. Paramos para ver o movimento da paisagem.
Hum, sei que as cores do dia também mudam no resto do mundo. Mas são outros sóis, são outros mundos. Imagino pólos sem sóis ou sóis que não findam. Sairia do trabalho sem quebras no dia. Preciso sentir a ruptura do tempo. Aí eu páro e recomeço ou mudo a marcha.
Mas voltando aos sóis de minha cidade, às vezes acho que desaceleramos porque hipnotizados.
Vontade de tomar uma cerveja. Deixo outros planos de lado. Tenho que fazer algo importante ainda hoje. Páro para ver as pessoas caminharem lento enquanto bebo uma cerveja. Penso em imagens. São várias tardes em quadrinhos.
Será que gosto mesmo dos finais de tarde ou serão as noites, mérito da continuidade, que lhes tomam o lugar magistralmente?
Não há quebras entre as tardes e as noites. São como dois amantes que se encontram para uma única valsa, frágeis momentos que lhes escapam contrariamente, fio tênue entre a matéria e a não-matéria de um e outro.
Peço outra cerveja, caminho em direção ao marco zero da cidade, espero o momento da dança. Miro o leito da valsa. Penso em tudo que ainda preciso organizar quando chegar em casa. Encosto o corpo no pára-peito que separa praça e rio. Está tudo muito amarelo e se não fosse minha respiração mais forte por conta da caminhada poderia ouvir os passos da valsa.
De olhos fechados penso que logo será noite. Terei que ir para casa. O encontro amoroso. Ele prepara a chegada dela, meia-luz, pede silêncio às margens, ela chega e atrás dela os primeiros holofotes. Não demora muito e já se vão os amantes. Resta outa luz. Resta a saudade do breve, o prestes a acontecer. Nós restamos sentindo, como penetras, o perfume de um baile que não é nosso. Nos convidamos. Noites iluminadas em quadrinhos.
Lembro-me da cerveja que esquentara enquanto trocada pelo espetáculo. A próxima sorvo em goles rápidos. As pessoas voltam a caminhar depressa. Costas às margens. Apresso-me conforme. Tenho poucas horas para arrumar tudo antes que meu vôo parta.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

estúpida permanência

Agora sim, acabou pra mim, continua pra ti.
Mas antes disso tive que suportar íngremes dias escalando as horas compridas com pensamentos repetitivos. Ah, mas quando perdi o controle foi um alívio!
Agora está certo, o tão nobre que tinha acabou pra mim, o trivial que sempre quererás continua pra ti.
O que mais tenho a perder se chego ao limite? O esgotamento nos paraliza. Arrefeceram os pensamentos. Os sons misteriosos do silêncio das horas agora estão mais harmoniosos. Depois que perdi o controle me fiz satisfeita, passiva ao tempo.
Deixo agora todo o desprendimento de tudo que tinha pois desprendo-me de ti. E tu, continuas preso ao mesmo desejo vazio, supérfluo linear que agora rompi.
O amor que sente, o amor que pensa, esgotaram-se batidas e tentativas, invisíveis e palpáveis. A mim não importa mais tudo que tanto me importou. A ti, que sempre importou pouco, te importa agora mais.
Depois do alívio que veio da queda, passos calmos e firmes, batidas compassadas. A ti, ofereço as costas, não há palavras nem restos do muito que havia em mim. E tu, permaneces no lamento, litania ignorada, desejos medíocres não mais correspondidos. Adeus.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

telepatinha


Desde criança Sônia já praticava a telepatia. Sonhava alerta no jardim de sua casa. Amiguinhos telepatas. Joaninhas, borboletas, formigas, lagartas, bichos da terra, até as paquinhas que moravam debaixo das pedras. Conversas vespertinas com cheiro de tera molhada.
Já vooooou!
A mãe não era telepata.
Volto já, meus amigos. Maravilhoso o mundo de vocês. Quase sempre não se fazem perceber.
Tic-tac, musiquinha que dá sono. Na cozinha com minha mãe nunca ouço o que ela fala. Tic-tac, meus olhos ardem. A conversa com o relógio dá sono.
Quando estou no jardim não penso nas horas. Na escola eu penso no jardim.
Tô chegando...
De noite que está tudo silencioso é quando gosto mais. Penso do meu quarto e começo a conversar. Levanto as pedras e elas estão lá. Também tem os fantasmas que são muito telepatas. Falam, falam e falam. Deixa falar. Aí, converso com o relógio, tic-tac, tic e o meu sono chega logo.
Aaai, difícil de acordar! Mãe, só mais um poquinho, um tiquinho de nada, vai!
Não adianta, a mãe não é telepata.
Na minha escola tem uma santa com quem eu gosto muito de falar. Mesmo quando passo por ela fazendo de conta que não a vejo tenho que voltar. Azulzinha e sorridente, não dá pra disfarçar, fico então a conversar. Na minha escola tem também muitas pinturas, guarda-chuvas, lancheiras, cadeiras, quadro, professora, corredor, recreio, até jardim tem. Penso novamente no jardim da minha casa. Mas nem tudo tem voz. Os meninos falam muito alto. O relógio do colégio não fala.
Humm, adivinha o que estou pensando agora...
Sei lá, você só pensa em besteira.
Penso nada!
Pensa sim!
Eu sei o que você está pensando, quer ver?
Meu irmão é mais velho do que eu. Ele é bobo, não gosta do jardim, mas eu gosto muito dele. Ele é bonzinho comigo e acho até que converso com ele quando estamos dormindo.
Tá certo, eu sei o que você está pensando.
O que?
Em nada.
Como assim, em nada? Não se pensa em nada!
Tá vendo! Agora você está pensando em nada, se está falando é porque tá pensando agorinha mesmo.
Assim não vale!
Irmão telepatinha. Eu sei que é ele que manda calado os fatasmas falantes irem embora. Melhor assim porque euzinha não dou conversa pra esses assombrosos. Fico caladinha da silva!
Não sei, acho que quando pensamos igual ao outro viramos telepatas. Por isso estamos unidos. É isso que une a gente. Aí a gente gosta do outro, porque o outro gosta das coisas como a gente. É assim com meu pai e minha mãe. Eles dizem que se amam. Amor telepático!
O relógio gosta só do tempo. Gosta mas não tem medo. Conversa com ele o tempo todo. Tic-tac, tic-tac...eles gostam da mesma coisa. Eu fico com sono toda hora.
As meninas do colégio dizem que falo pouco. Ué, mas eu penso tanto! Penso falando e falo com o pensamento.
Tão bonzinhos meus amiguinhos do jardim! São os mais lindos dos mais lindos! Amor telepático!
Quando eu crescer quero ser viajante. Procurar no mundo inteirinho amores e mais amores...