domingo, 3 de maio de 2020
2020. o diário do mundo. 5
Descobrimos, nesses dias a sós com o que achávamos que éramos, que cristalinamente não somos os mesmos.
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E que trocamos de pele qual réptil várias e várias vezes. E que quando se trata da gente nem parece tão grotesco, mas somente a busca pela camada perfeita à qual muito certamente não se chega.
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Sempre achamos que somos melhores por dentro. Descamamos pela alma terna. Quem dera! Em alguma outra era. Seremos.
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Sobramos nós e o espelho. Um a zombar do outro sem risco de fugas, minha, sua ou dele. O que ele diz com minha voz, eu receio, não condiz com a verdade dos meus anseios.
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Depois de crus e nus e sem pele, como poderemos com o que sobra de nós mesmos?
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Arte: Antoine Wiertz. "A Bela Rosine (Nu com Esqueleto), 1843.
quarta-feira, 15 de abril de 2020
2020, o diário do mundo. 4.
A gente se equilibra pequeno na sacada do oitavo andar
ou no parapeito da janela do quarto
ou na mureta da casa de paredes baixas,
que dá pra rua sem função de estrada,
como em prece de quem pede perdão atrasado,
com pouca esperança de convencer o mundo uma chance de voltar.
Eu, se fosse o mundo, não deixava.
A gente empina a cara pra fora e se retorce em busca de um pedaço de céu ou de sol, aponta as narinas pra o clima que pela primeira vez atravessa fresco o asfalto,
pensa que o mato da calçada cresceu tão rápido
ou que a tarde está absurdamente mais majestosa
mas que ainda há quem negue lá fora
o próprio pecado,
afastando com a feiúra da loucura humana a cura ou o perdão que poderiam chegar
Você, se fosse o mundo, perdoava?
Não somos o mundo.
Não somos o mundo.
Que sorte a nossa.
Temos uma chance, quem sabe, de mudar.
ou no parapeito da janela do quarto
ou na mureta da casa de paredes baixas,
que dá pra rua sem função de estrada,
como em prece de quem pede perdão atrasado,
com pouca esperança de convencer o mundo uma chance de voltar.
Eu, se fosse o mundo, não deixava.
A gente empina a cara pra fora e se retorce em busca de um pedaço de céu ou de sol, aponta as narinas pra o clima que pela primeira vez atravessa fresco o asfalto,
pensa que o mato da calçada cresceu tão rápido
ou que a tarde está absurdamente mais majestosa
mas que ainda há quem negue lá fora
o próprio pecado,
afastando com a feiúra da loucura humana a cura ou o perdão que poderiam chegar
Você, se fosse o mundo, perdoava?
Não somos o mundo.
Não somos o mundo.
Que sorte a nossa.
Temos uma chance, quem sabe, de mudar.
quarta-feira, 1 de abril de 2020
2020, o diário do mundo. 3.
Tentando me casificar, como quem se corporifica quando se lembra que tem dedo porque o dedo está machucado e machuca, ando me vendo pelas paredes que me vêem de todos os ângulos de dentro da casa.
A gente aprende a personificar o que está a nossa volta e a redescobrir o afeto que existe naquilo que sempre esteve lá.
Estou presa a uma infinidade de ângulos e texturas daqui de dentro e tentando buscar toda a poesia que não compensa o fluxo do sentimento de culpa por aqueles que estão do lado de lá.
Ouvi por cima dos muros dos autofalantes, dos que por incrível que pareça se dizem importantes, que há vidas menos importantes.
Sofri e gritei às paredes, às alturas, ao quintal, ao pedaço de céu que desobediente me sobra, aos que sempre estarão comigo e estão agora, COMO PODE A MALDADE PRA ALÉM DA LOUCURA VINGAR?!
Ahh, estamos quietos. Mas sairemos mais fortes e mais espertos, pra mostrar a força do mundo ao TODO.
segunda-feira, 23 de março de 2020
2020, o diário do mundo. 2.
Denise
sempre pensou os dias de sua vida como as cores e músicas mais ou menos
preferidas. Havia noites azul marinho como céu de lua nova que não se fazia
breu, mas deixava rastros de brilho de estrelas fazendo um azul mais claro,
possivelmente às quintas-feiras.
As
quintas tinham um jeito de jazz na vitrola que não era vitrola, mas o som da
caixinha que reproduzia a lista de canções do celular. Mas parecia vitrola
quando fechava os olhos e se deixava dançar entre os móveis da sala. Na
verdade, não tinha tantos móveis assim, mas a cômoda de madeira antiga herdada
pela avó materna tinha cheiro de casa sua e parecia que à noite incensava mais
forte como jasmim no quintal.
As
quintas azul marinho eram seus dias preferidos e, quem sabe misturadas ao sabor
do vinho, quase sempre terminavam em um tipo de solitude satisfatória com
cheiros, cores e sabores misturados que bastam pra quem se quer deixar estar.
É
possível que se chamasse Mariana e gostava do amarelo das superfícies que
brilham como a pasta de atividades da escola que guardava na lembrança junto às
memórias mais primeiras da vida que não se consegue a data precisar.
Mariana
achava que os sábados pareciam os girassóis de Van Gogh, radiantes de toda
claridade amarela, balançantes de bossa nova e preguiçosos de levantar. Gostava
da praia mas quando precisava ficar em casa abria as janelas e com facilidade
sentia o cheiro da areia e a moleza no corpo que a fazia deitar como se alguém lhe
tocasse os cabelos com delicadeza deixando os olhos lentos e com pequenos ardores
até que fosse impossível não se deixar levar.
Os sábados
têm cheiro de sol, luzes impressionantes e hipnoses que aquietam a alma no
corpo mole que fazem do nada um remédio bom de provar.
Mas acontece
que, nas noites de domingo, Rose sentia angústia pelo escuro muito úmido que
invadia a casa pelas portas e janelas e ameaçava seus sentidos que ficavam
divididos entre o silêncio pesado do ar e qualquer outro som que a rádio ou
tevê pudessem propagar.
Era
duro ser aos domingos. Como quem sente culpa de sentir os odores das flores ou de
ver o céu estrelado. A vitrola até descansa nas noites de domingo, os olhos não
ardem de moleza, é difícil dormir cedo e se sente solitário.
Para
Lílian, as segundas eram o dia de alívio. Como quem começa pelos itens menos
saborosos do prato, engole o jiló primeiro, para então degustar por ordem de
delícia as maravilhas que vêm depois.
Era sempre
um recomeço que depois do impulso inicial colocava tudo no lugar. O dia começava
branco cegante no trabalho, amornava quando chegava em casa, quando cansada
punha minimamente as coisas em ordem, e terminava com afeto granulado das telas
de Klimt, colada ao outro da casa, com cheiro de piso limpo e som
cinematográfico no sofá.
Acontece
que hoje acordei sem saber direito meu nome. Nem as cores, cheiros ou músicas
da semana, e sem saber como se faz para estar. A folhinha pregada à geladeira
ficou opaca e não sei em que dia estamos, muito menos o dia que virá. Já
revirei a terra do quintal pra tentar sentir o cheiro da cômoda da minha avó,
liguei a vitrola e o jazz me pareceu arranhado, abri as janelas pro sol entrar,
mas a areia não passou por perto, limpei a casa e não me pareceu segunda nem
nada, somente o oco sem cores dos dias iguais. Tentei a solitude e só senti
solidão.
sábado, 21 de março de 2020
2020, o diário do mundo. 1.
1.
Clarinha
corria pelo quintal da casa que não lhe pertencia, mas que serviria como lar
por tempo indeterminado. A grama estava verdinha e bem aparada e havia um
caminho de pedras que escondia um mundo inteiro de seres minúsculos por debaixo
delas. Assim pensava Clara, a mais nova, sete ou oito anos, enquanto pulava
pelas lajotas contando uma a uma e calculando os saltos para que os pés não
tocassem a grama.
Guilherme,
ou Francisco, tenho quase certeza que era Guilherme seu nome, sentia o sol aquecer
seu corpo deitado no batente da varanda e, ainda que tivesse mostrado resistência
a essas férias forçadas e à casa que não era sua, como se espera de todo
pré-adolescente com seus onze ou doze anos, pensou que não seria de todo mal
ficar um período longe da escola e de todos os conflitos, testes e tarefas que considerava
desnecessários e inoportunos e que não passavam de perda de tempo. Sentiu quase
alívio, mas manteve a cara amuada para todos os efeitos e continuou no mesmo
canto sem dar cabimento para muita conversa.
Maria
Lúcia, professora ou veterinária, não tenho certeza, guardava as compras e
arrumava o quarto que dividiria com seus dois filhos de agora em diante sem
pensar muito em si ou no resto do mundo. Guardava e arrumava, contando os itens
e fazendo cálculos rápidos sobre a duração do estoque ou sobre como organizaria
as refeições. Estava pausada da vida e tinha esperanças de retornar em breve ao
ponto justo da pausa, quando voltaria a ser Maria, a professora ou a
veterinária, sem economia de pensamentos, questionamentos e energias, sendo
vida que não percebe viver..
Maria,
Clarinha e Guilherme eram três mundos isolados juntos. Três fronteiras ligadas
pelo afeto, mas separadas por uma percepção completamente diferente do que
seriam aqueles dias, ou meses, vivendo em confinamento naquela casa que ironicamente
não era, mas não poderia ser mais deles do que qualquer outra moradia.
Clara era o país da leveza, cultivando sem perceber toda a poesia que a infância permitia explorando cada pequeno recanto do jardim e imaginando mil e um roteiros percorridos entre o oitão da casa que ligava o portão da frente ao fundo do terreno. Guilherme se isolava e mal se movia, mas trazia o mundo de fora pelas notícias e relatos dos conhecidos e dos desconhecidos que lia no celular, e Maria Lúcia tentava ao máximo se manter alheia de tudo para seguir no automático cuidando do funcionamento do que seria seu limitado mundo e das crianças.
Clara era o país da leveza, cultivando sem perceber toda a poesia que a infância permitia explorando cada pequeno recanto do jardim e imaginando mil e um roteiros percorridos entre o oitão da casa que ligava o portão da frente ao fundo do terreno. Guilherme se isolava e mal se movia, mas trazia o mundo de fora pelas notícias e relatos dos conhecidos e dos desconhecidos que lia no celular, e Maria Lúcia tentava ao máximo se manter alheia de tudo para seguir no automático cuidando do funcionamento do que seria seu limitado mundo e das crianças.
Guilherme
contava com frágil preocupação sobre a quantidade de doentes mundo afora, o
colapso econômico e o esvaziamento das mercadorias nos supermercados do país e
do mundo e às vezes lia em voz alta trechos dos textos pouco confiáveis que
encontrava em suas redes sociais. Maria Lúcia sabia que grande parte era verdade,
filtrava partes, imaginava que ainda outras podiam ser piores porque sempre
acreditou em subnotificações sobre tudo no mundo, mas mudava de assunto, falava
que o almoço estava pronto, reclamava da bagunça e relembrava que todos deviam
fazer sua parte para manter a casa em ordem. Clarinha puxava sem sucesso uma
brincadeira com o irmão, falava dos bichos do jardim e propunha um banho de
mangueira. Estava calor, tanto calor que por mais que Maria não quisesse pensar
em nada, o calor pensava por ela e virava tema em sua cabeça. O que fazer com
esse calor todo? Clarinha abraçava a mãe. O carinho da menina era tão
verdadeiro quanto aleatório. Era do tipo que dizia “eu te amo” e distribuía beijos
e carinhos a qualquer momento e independente de cabimento. Era amor expresso
que equilibrava o que não se falava na casa. Guilherme tentava interpretar os
abismos à sua volta como se ele próprio não fosse parte do desmantelo, achava
graça da mãe negando os fatos e se divertia com a desinformação da irmã mais
nova.
O
dia seguia, como seguiriam muitos outros ainda, com as bordas sensíveis
daqueles três a se tocarem como num equilíbrio torto que faz um segurar o
outro, como escultura estranha que nos admira não desmoronar. Cada qual que
buscasse ou a realidade, ou o sonho ou a certeza de que não vale a pena
realidade ou sonho.
Exceto
quando já era tarde da noite e as crianças dormiam e Maria Lúcia se permitia
ser algo além da integridade por um fio, como quem segue dando corda para que o
relógio daquela frágil sobrevivência não parasse, para se vivificar, sentir as
dores, os medos, e pensar na vida além das refeições e arrumações, chorar pelas
incertezas e sorrir com ternura pelas trelas carinhosas de Clarinha e pelos
boletins informativos de Guilherme, que se fazia quase crível fortaleza. Maria
Lúcia, enfermeira ou veterinária, chorava até dormir sentindo que não havia
fronteiras dentro daquele quarto e que no dia seguinte ela voltaria ao
automático até que tudo passasse e ela voltasse a ser Maria.
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