segunda-feira, 23 de março de 2020

2020, o diário do mundo. 2.


Denise sempre pensou os dias de sua vida como as cores e músicas mais ou menos preferidas. Havia noites azul marinho como céu de lua nova que não se fazia breu, mas deixava rastros de brilho de estrelas fazendo um azul mais claro, possivelmente às quintas-feiras.

As quintas tinham um jeito de jazz na vitrola que não era vitrola, mas o som da caixinha que reproduzia a lista de canções do celular. Mas parecia vitrola quando fechava os olhos e se deixava dançar entre os móveis da sala. Na verdade, não tinha tantos móveis assim, mas a cômoda de madeira antiga herdada pela avó materna tinha cheiro de casa sua e parecia que à noite incensava mais forte como jasmim no quintal.

As quintas azul marinho eram seus dias preferidos e, quem sabe misturadas ao sabor do vinho, quase sempre terminavam em um tipo de solitude satisfatória com cheiros, cores e sabores misturados que bastam pra quem se quer deixar estar.

É possível que se chamasse Mariana e gostava do amarelo das superfícies que brilham como a pasta de atividades da escola que guardava na lembrança junto às memórias mais primeiras da vida que não se consegue a data precisar.

Mariana achava que os sábados pareciam os girassóis de Van Gogh, radiantes de toda claridade amarela, balançantes de bossa nova e preguiçosos de levantar. Gostava da praia mas quando precisava ficar em casa abria as janelas e com facilidade sentia o cheiro da areia e a moleza no corpo que a fazia deitar como se alguém lhe tocasse os cabelos com delicadeza deixando os olhos lentos e com pequenos ardores até que fosse impossível não se deixar levar.

Os sábados têm cheiro de sol, luzes impressionantes e hipnoses que aquietam a alma no corpo mole que fazem do nada um remédio bom de provar.

Mas acontece que, nas noites de domingo, Rose sentia angústia pelo escuro muito úmido que invadia a casa pelas portas e janelas e ameaçava seus sentidos que ficavam divididos entre o silêncio pesado do ar e qualquer outro som que a rádio ou tevê pudessem propagar.
Era duro ser aos domingos. Como quem sente culpa de sentir os odores das flores ou de ver o céu estrelado. A vitrola até descansa nas noites de domingo, os olhos não ardem de moleza, é difícil dormir cedo e se sente solitário.

Para Lílian, as segundas eram o dia de alívio. Como quem começa pelos itens menos saborosos do prato, engole o jiló primeiro, para então degustar por ordem de delícia as maravilhas que vêm depois.

Era sempre um recomeço que depois do impulso inicial colocava tudo no lugar. O dia começava branco cegante no trabalho, amornava quando chegava em casa, quando cansada punha minimamente as coisas em ordem, e terminava com afeto granulado das telas de Klimt, colada ao outro da casa, com cheiro de piso limpo e som cinematográfico no sofá.

Acontece que hoje acordei sem saber direito meu nome. Nem as cores, cheiros ou músicas da semana, e sem saber como se faz para estar. A folhinha pregada à geladeira ficou opaca e não sei em que dia estamos, muito menos o dia que virá. Já revirei a terra do quintal pra tentar sentir o cheiro da cômoda da minha avó, liguei a vitrola e o jazz me pareceu arranhado, abri as janelas pro sol entrar, mas a areia não passou por perto, limpei a casa e não me pareceu segunda nem nada, somente o oco sem cores dos dias iguais. Tentei a solitude e só senti solidão.