terça-feira, 4 de março de 2008

paralelepípedos


Encontrei o poeta sozinho numa madrugada de começo de semana. As madrugadas da segunda ou terça têm um sabor peculiar, uma euforia proporcionada pelo sentimento de transgressão. Ou vai ver que não era nada disso, eu já havia bebido um bocadinho e ELE era o poeta. Mas poeta sozinho pela noite é mais normal que surfista tomando açaí na praia. Mas calma. A princípio ele não era poeta, nem era nada. Estava lá e pronto. E eu estava um pouco bêbada e achei que ele era um pintor ou coisa assim. É que estávamos na rua. Uma rua de paralelepípedos molhados. Ou vi isso num filme? Já notou que as ruas sempre estão molhadas nos filmes? Acho lindo isso, até porque aqui tá sempre seco. Mas nessa noite estava molhado. Sei disso porque as luzes dos postes, que estavam especialmente amarelas, estavam brilhando no chão molhado. Ah, parecia pintura...ou filme! A música eu acho que não lembro. Sei lá, essa coisa de memória seletiva, a música era ruim. E tive medo quando pensei que poderia ele ser um fantasma, um fantasma solitário de um grande artista de outrora...opa, mas fantasma não fuma! Ou fuma? E também estava sozinha, preferi achar que não. Ele fuma e deve ser filósofo. Acho que está tarde. Com certeza deveria ir embora. Não consigo ouvir essa música! Mas o que será que ele faz afinal? É curioso como se comporta o ser solitário. Posso com um certo ar arrogante: humm, estou aqui sozinha tomando um drink e não preciso de ninguém, ou algo como: até Buda invejaria tamanha serenidade! Ou posso estar com a maior cara de concentração de cirurgião enquanto me pergunto o que danado aquele outro solitário lá faz quando não está triste assim. Mas que será, que será...será que pensa em nada como eu? Calculo o consumo da cerveja de forma que beba rápido os primeiros dois terços e assim não esteja nunca quente. Um doido reconhece outro. É um triste! Diz, poetinha, já que olhas tanto para mim, és por acaso oftalmo? Professor? Não sabe? Ah, vê se me esquece! Já é tão madrugada que está perdendo a graça transviada, vou projetar a partida. Queria ser pintor para guardar as madrugadas. Retrataria essa noite com todas as luzes, paralelepípedos molhados de amarelo e pessoas desconhecidas, menos o meu companheiro solitário, pois como explicaria sua presença em meu quadro? Sabe de uma coisa, obsessão de bêbado é o cúmulo da falta de criatividade e amanhã ainda perco o dobro de tempo tentando me perdoar, espero que o triste reconheça o outro de fato. A conta ao garçom que pergunta o meu nome. Prazer, o seu? Não entendi, mas um educado reconhece o outro. Antes de ir, junto ao troco um pequeno bilhete. Ele era, de fato, poeta. E também falava de solidão:




"Ana

De um ponto
em que não se ia
nada mais
que solidão,
que agonia,
havia luz
e luz acendia,
como se incendeia
mil areias
sobre mim.
Sobre as veias
soterradas
de um coração
com teias,

de um ponto
que não engana:
ana."



Para meu amigo, poeta desconhecido. Muito obrigada.






5 comentários:

Anônimo disse...

Lindo.

Anônimo disse...

percorrendo a estrada de paralelepípedos... Depois de um furacão. Com o homem de lata, o espantalho e o leão. Nunca pensava que iria tão longe. Mas, claro, mesmo durante a viagem doida alucinógena, sempre esteve por aqui. Muito perto. Na dimensão paralela do mesmo lugar. Mas isso é um filme ou um livro? Garçom, o de sempre por favor. Olha... É um privilégio para quem pode, da mesa ao lado, tê-vê-la, ao mesmo tempo, tão longe e tão perto. Ahhhhh, isso é um filme! Flasback. Um brinde aos anjos da alta madrugada.

Ana Areias disse...

Hamilton!!!
Que delícia tê-lo por aqui!
Façamos então esse brinde na dimensão paralela do mesmo lugar...
adorei isso!
beijo!

Anônimo disse...

A prática leva a perfeição!
Se bem que você não precisa ser perfeita...
A sua humanidade ( imperfeição ) é que faz de você um ser pleno. E que eu amo muito!
Parabéns, Aninha!
Esse conto é digno de um poeta-escritor com toda sua maravilhosa imperfeição!
Beijos
Florencio

Anônimo disse...

"Por que será que os fantasmas não fumam?" Quando Quintana escreveu isso ele já tinha me conquistado, mas é ótimo encontrar a referência aqui, lindo!
Um charme o encerramento; e um bom poema.
Gerald