sábado, 8 de março de 2008

Uda


Resta muito pouco. Não falo do tempo, mas das razões de ser. Hoje, para mim, solidão é não ter mais cúmplices. Não vejo sentido quando me falam da beleza que uma longa vida pode ter por conta das experiências que os velhos passam aos jovens. Eu quero dividir, compartilhar. Onde estão as testemunhas comuns a mim? Meus irmãos morreram. Não gosto de conversar sobre o passado com as pessoas do presente. Seria bom reviver muitas coisas durante uma tarde inteira numa conversa com os amigos. Tocar juntos. Falar do trabalho e dos filhos. Lembrar a primeira serenata...Meus amigos morreram. A primeira serenata nem foi para Uda, minha querida Uda. A última cúmplice. As lembranças, não interessa se boas, são cruéis. Sorrisos ansiosos por um bom conto do passado, egoístas! Vivam suas vidas! Eu gosto de conversar com Uda mas não falamos muito. Uma irmã querida costumava vir sempre. Pode-se estar no presente quando em companhia de alguém que viveu o mesmo passado que a gente. Ela nunca mais veio. Testemunha apagada. Ô Uda, vamos! Já estou pronto. Todas as tardes vamos juntos à missa. Acho que espero o dia inteiro pelo fim da tarde. A caminhada até a praça nos pertence. Uma realidade autêntica. Quase setenta anos juntos. Juntos à praça! Uda, essa camisa é a mesma de ontem, Alice me trouxe duas novas ontem. Alice é uma de minhas filhas. Tenho quatro. Não sei porque Uda agora inventou de se fazer de lesa. Deve achar engraçado encenar todo esse esquecimento só para irritar. Como eu disse, gosto muito da caminhada vespertina rotineira. Passo por casas e lembro de pessoas, lembro de fatos. Lembro tranquilo, pois ela entende do que falo, ela sabe das casas, sabe também das pessoas. A história das coisas é importante. Ela sabe. Mas nos últimos meses não falamos muito. Tem algo de melancolia em minha Uda, está cansada de nossas conversas, prefere não lembrar e até finge que não se lembra. Mas também devo dizer. Ô Uda, não se reconhece mais esse bairro, nem as pessoas e as casas quase todas já são outras. O que mais amo em minha Uda é que ela está sempre sorrindo. Sorriso gostoso. Sorriso cantado, parece marchinha de carnaval. Não há uma filha sequer ou neta herdeira da serenidade de minha Uda. Que remédio é este que você está tomando? Não vai tomar nada! Eu sou médico, portanto eu mesmo receitaria algo se precisasse. Você não tem nada, está ótima. Isso são manias dessas meninas. Minhas filhas acham que não percebo esse alvoroço todo. Teimam em levar minha Uda pra lá e pra cá, especialista disso e daquilo, é isso que lhe está fazendo mal. É por isso que anda meio assim, é só chateação. Acaba que nunca mais cuidou de suas rosas ou cantou suas marchinhas preferidas. O jardim também morreu e a terra seca não me diz nada. Tenho medo que minha casa crie vontade própria e mude também. O cerco se fecha. Mutantes sorridentes. Mas eu também não sei para que servem essas pílulas! Eu tomei pílulas? Não fui eu! Foi?! Eu exerci a medicina durante toda a vida. Hoje ela não está mais em mim. Meus pacientes quase todos já se foram. Mas espreito tudo e guardo o que acho calado. Mas com minha Uda não permito! Ô Uda, meu Deus, não tome essas coisas, vá se arrumar, deixe de conversas e não me venha com esquecimentos que você não está gagá! Eu não posso com as coisas do mundo de hoje. Quem meus netos pensam que são? O jornal nacional parece mais o nacional de Marte. De novo a solidão. Penso que a loucura é quando não há mais testemunhas que confirmem as suas lembranças. Junto com a lucidez de Uda vai minha última possibilidade de compreensão. Novamente às conversas egoístas do mundo sobrenatural. Melhor cuidar dos passarinhos. O bom seria ter passarinhos desde a manhã até a hora da missa. Uda agora só canta. Tento pensar que canta as marchinhas intencionada de algo. Canta por nada. Canta durante a caminhada à praça. E quando não está cantando olha para o nada. Seguro forte sua mão, lhe abraço apertado, agora seu sorriso me assusta, peço, peço a minha companheira de vida: por favor não me deixe só!

5 comentários:

Anônimo disse...

Saudades do futuro.

Unknown disse...

Uau!

Acabei de ler seus contos todos, "at one sitting" (como diria Poe), e... UAU!!!

Se eu já era seu fã só pelo fato de você existir, imagina agora que descobri sua verve literária. Linda, delicada, fascinante... você já conquistou na primeira linha!

Muito sucesso, querida!

Xêru enooorme

Leo Moz

Anônimo disse...

Ana,você escreve muito bem. Me emociona profundamente. Conhecer você, acredito, ainda será fundamental. Como disse seu amigo abaixo, "linda, delicada e fascinante". Assino. E acrescento: um mistério a ser resolvido. Aguardarei sempre com ansiosidade um novo texto. E quero ver o "desafio Noel" acontecer.

beijo


eduardo

PS: vai aí um poeminha novo, para quem achar que seu "poeta anônimo" não existe:

"Choro

quando choro
quero colo
mas não cola.
Peço esmola;
ninguém
dá bola
nem se amola
se chorando e
mendigando
no centro
da cidade
que não quero
choro,
me esfolo
e morro:
quero coro
de vozes,
de lágrimas
e de sufôco.
Não quero
beijos
nem de troco."

;-)

Anônimo disse...

e realmente não há melhor lembrança de um bom carnaval do que um sorriso sereno, um carnaval anti-eufórico feito de uma leve alegria perene... carnaval que faz parte dos velhos, das meninas, do banco de praça... ou, no salão, da saudade, da orquestra de violão, da madeira perene...

um "sorriso de marchinha de carnaval" - bela imagem!

Anônimo disse...

e realmente não há melhor lembrança de um bom carnaval do que um sorriso sereno, um carnaval anti-eufórico feito de uma leve alegria perene... carnaval que faz parte dos velhos, das meninas, do banco de praça... ou, no salão, da saudade, da orquestra de violão, da madeira perene...

um "sorriso de marchinha de carnaval" - bela imagem!