sexta-feira, 28 de junho de 2019

Simplesmente coração

Não vim aqui pra ter razão, 
até mesmo porque essa nunca me foi convincente.  
Passo os dias, e as noites principalmente, explicando à mente que os sentidos da face têm mais razão. 
Não sei o que seria de mim sem os buracos da cara, 
olhos, ouvidos, boca e nariz, 
a darem vazão às enchentes que vêm de dentro, 
encantamentos.
A mente definitivamente não comporta o que transborda da nascente.
Talvez queira me dominar sorrateiramente, mas hei de ser apenasmente coração. 

sexta-feira, 21 de junho de 2019

VII. Febre

Já tentou diminuir uma febre sem se deixar curar?
Cortar displicentemente o medicamento que afasta a mazela, pausando seu efeito, não se deixando são ou mal por inteiro, mas administrando o que te te faz viver e morrer por dentro?
Assim te envolvo, me afasto, me entrego e te nego, dando pausas àquilo que me consome o corpo e a alma que é pra não deixar escapar, a ti e a mim, ligeiro.
Fico e corro pra equilibrar nossas faces, sublimes e grotescas, gozo e apatia, até o dia em que não tivermos mais anticorpos que nos mantenham vivos um do outro.

terça-feira, 18 de junho de 2019

Players

Tive uma conversa séria comigo mesma e cheguei à conclusão que somos muito diferentes. 
Ninguém cede, ninguém quer ceder, ninguém se entende. 
Pra além da teimosia, temos argumentos sólidos e quentes, cabeça e coração persistentes.
Como num jogo de xadrez com o espelho, nós duas, eu que me xeque, as rainhas que se matem.
Quem se atreve?
Haveremos por um fio tenso enquanto mantivermos o empate técnico. 


domingo, 16 de junho de 2019

Te encaminho

Caminha-se junto quando se combina a passada pela mesma estrada,

Se arrefece no outro as intempéries,
Se dói na pele a pedra e o calo da outra pele,
Se divide as beiras descansadeiras,
Se passa o gole da garrafa aliviadeira,
Se encosta no que juntos fazem ninho,
Se contempla a beleza que o olho outro captura,
Se renova a sede do caminho a cada amanhecer.

Se encaminham um no outro,
Se encaminham para um e para o outro.

quinta-feira, 13 de junho de 2019

VI. O jantar

Precisei buscar umas coisas no mercado. Optei por ir à feira livre. Respirar outros ares não impregnados dos nossos seres que fazem vapores proibidos. Rua, calçada, banca, gente inocente dos verbos por nós proferidos. Não pude disfarçar o sorriso. Percebi que teu cheiro estava comigo. Teu? Sorri de novo. Nossos indivíduos. Meu cheiro muda contigo, alquimista. Comprei tudo que era preciso. Mais gente. Olhares que me julgam e acertam o meu mais proibido. Duvido. É que gosto de caminhar mesmo quando não há motivo. Melhor, caminhar é o meu motivo, mas às vezes o pouso é preciso. Senti saudade do ar opaco do nosso recinto. Volto apressada com a sacola com as coisas do jantar que com muita certeza não será possível. Não antes do imprescindível.

Afeto

De passagem, longe de chegar:

- fica um pouco, meu bem!
- ah, desejo ficar a eternidade que couber nesse momento.
- então desejas ficar mais tempo?
- o tempo físico, que parece pequeno, quanto mais vivido, mais perto de ser o tempo do pra sempre.
- ou se esgota ou é pra sempre...
- o tamanho da nossa noite não tem esgotamento.
- mas amanhã já partes...
- a partida não destrói as paralelas das nossas horas mais intensas. Seguiremos e ficaremos, pois amanhã serei outro a caminhar pela estrada. Terei em minha linha o tempo construído daquele momento.
- ah, mas me dói o apego, como não carregar os instantes com uma porção de lamentos?
- sim, os lamentos escorregam em espirais do pensamento, esvaziando o passado e o presente, te roubando retratos, borrando toda beleza vivida. Melhor não elegê-los.
- sim...
- nutre aquilo que te faz mais pleno, mais vivo e mais vibrante. Trata com carinho e orgulho teus momentos. O afeto tem uma densidade diferente que não se perde no tempo e se faz constante num espaço latente. Deixa afetar. Bombeia pro pensamento.
- deixo. Afeto. Afeta.

terça-feira, 11 de junho de 2019

V. Ebulição



Rega as flores da tua pele, lavra com tuas unhas, abre teus poros, deixa brotar cada fio, transborda tua lava.

O que te nutre por dentro te esparrama por fora e semeia o mundo a tua volta. Gera tudo. Gera vida e te faz vibrar.

O resto é calor acumulado, choque das tuas partes quando se enquadram, eletricidade. És tu e somente tu sendo reator(a) da chama toda.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

enchente

Eu me lembro de pensar no absurdo como uma poeira densa que cobre tudo,
apagando os contornos das nossas certezas todas,
nos calando a boca diante do indizível mais impossível,
distorcendo o mundo pelas lentes dos piores seres,
oprimindo nossa pele, nossa fé, nossos amores,
fazendo arder os olhos com o pó vil da maldade.

Acontece que choveu muito nessa madrugada.
Chuva forte que limpou toda poeira do céu,
varreu as ruas, drenou corações afogados, desaguou esperança,
limpou nossas pupilas
e nos deixou em festa,
perplexos com a beleza que a liberdade da verdade nos dá.

sábado, 1 de junho de 2019

IV. Vapor

Já te falei do vapor que cozinha as coisas todas ao nosso redor, meu amor.

Da neblina fina que te faz uma cortina mostrando o vermelho opaco da tua cor.

Nuvens impressionistas que dividem teu feixe em camadas e me confundem a figura pintada com ardor.

Não te alcanço. Fecho os olhos. Te contorno. Até chovermos translúcidos, limpando-nos as vistas e deixando o ar incolor.